quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Não há volta

Arranquei hoje a página relativa ao mês de abril da folhinha de parede que fica bem em frente da minha mesa. Estamos em 1 de maio. Penso no que isso importa. Não tenho nenhum compromisso agendado.
Daqui do sítio, onde me refugiei há pouco mais de um ano por vontade de voltar pra casa, mas também para ficar distante do horror político que eu sabia que viria com a eleição de Bolsonaro, acompanho as notícias da pandemia com o coração apertado.
Tento imaginar o futuro, pós-covid 19, e me encho de esperança de que passado o sofrimento o mundo saberá reinventar-se em outras bases, mais fraternas, solidárias, sem essa distância social absurda - no sentido do abismo existente entre ricos e pobres - e onde os preconceitos sejam enfim reconhecidos como tal e banidos do convívio humano.
Mas só que não. Assisto horrorizado o que o governo brasileiro tem feito: trapaceia para distribuir a ajuda aos mais vulneráveis, enquanto libera, incontinenti, bilhões aos bancos.
Será o coronavírus tão poderoso que até mesmo situações como essa serão superadas diante da necessidade de reorganização das relações sociais, econômicas e ambientais... E já me pego esperançoso de novo.
A discussão sobre a instituição de uma renda básica universal, bandeira de luta há décadas de Eduardo Suplicy, está em alta. Os sistemas de saúde, em nosso caso o SUS, voltaram a ser valorizados, e os equipamentos e estruturas necessários para o combate ao vírus, em boa parte, permanecerão após a pandemia, fortalecendo a capacidade de atendimento.
De outro lado, surge o fantasma de um controle absoluto dos nossos passos e atos, via dispositivos digitais, sob o pretexto de prevenir a propagação de doenças. Ideia que já passou, na ficção,  pela cabeça de George Orwel, com seu 1984, e Aldous Huxley, com Admirável Mundo Novo, mas que qualquer ditadorzinho de meia tigela vai adorar - e que em alguma medida já vem sendo posta em prática, inclusive no Brasil. Volta o pessimismo.
A disputa fundamental da Humanidade continua sendo - desta vez mediada por um vírus - entre civilização e barbárie. Só que os bárbaros contemporâneos dirigem SUVs em carreatas macabras.
Volta o otimismo: são os estertores de uma sociedade doente, de um sistema podre, sem futuro. Continuo a acreditar que não há volta para aquela aparente normalidade de alguns meses atrás, porque o vírus está bagunçando o coreto e aos poucos constatamos que o que fazíamos não era viver - era outra coisa, que pode ser chamada de Marcha da Insensatez, título emprestado do livro da historiadora Barbara Tuchman - e tampouco agora sabemos o que é viver: vamos descobrir juntos. Quem viver, verá.